14 de julho de 2010

Otto Mühl com exposição em Viena


Os sobreviventes da maior comunidade de sexo livre da Europa refugiaram-se em Portugal. O seu guru, o pintor Otto Mühl, passou seis anos na prisão por pedofilia. Hoje, vive entre Faro e Tavira e verá os seus tabalhos expostos em mais um grande museu de arte Museu Leopold de Viena, o que está a relançar a poémica, ver mais em noticia, aqui.

Textos de Katya Delimbeuf

Nos confins da serra algarvia, várias famílias estrangeiras habitam em regime de comunidade. Uma comuna. Cinco autodenominadas «famílias de artistas» vivem ali há quatro anos, tentando «fazer da vida uma obra de arte». O facto pouco teria de relevante, não fosse a comunidade ser liderada por quem é: Otto Mühl é um pintor de renome internacional, mas também o fundador da Comuna de Friedrischof, na Áustria, em 1971. Esta comunidade, onde se praticava o sexo livre, onde os conceitos de família tradicional foram abolidos e se partilhava a intimidade com centenas de pessoas, foi a experiência do género que mais sucesso teve na sua época, chegando a reunir mais de 600 membros.


Além de ousada e inédita, à Comuna de Friedrischof não faltou polémica: o conceito de casal arrasado, os aprendizados sociais questionados, o dia-a-dia ocupado em «sexo, arte e terapia» ajudaram facilmente à controvérsia.


Em 1991, Otto Mühl foi condenado a oito anos de prisão por pedofilia e incentivo ao uso de drogas. Cumprida a pena, refugiou-se em Portugal. Apesar de estar referenciado pelo SIS, ninguém conseguiu provar que mantém o tipo de vida que sempre o caracterizou. O Expresso encontrou-o - e à sua pequena comunidade de 26 adultos e crianças - e conversou com ele. Falou-se da obra artística, da pena de prisão, da experiência de Friedrischof, do quotidiano no nosso país. É a história de um «artista do século XXI» que acredita estar à frente de um projecto de vanguarda, considera ter enfrentado a punição da sociedade do seu tempo por ter ousado ser diferente, mas que crê: o futuro far-lhe-á justiça.


O Museu do Louvre expôs quadros dele em duas mostras: «Posséder et Détruire - Stratégies Sexuelles dans l'Art d'Occident» (Possuir e Destruir - Estratégias Sexuais na Arte Ocidental), em 2000, e «La Peinture comme Crime ou La Part Maudite de la Modernité» (A Pintura como Crime ou A Parte Maldita da Modernidade), em 2002. Mühl viu assim a sua obra ombrear com as de Picasso, Goya, Yves Klein, Jackson Pollock, Miguel Ângelo ou Klimt.


Os críticos sentenciaram: o Louvre tinha ajudado a consagrar a obra do polémico artista, que se celebrizara nos anos 60 pelas suas «acções materiais» (ou «performances»), em que substâncias como molho de tomate, compota, amoníaco, ovos, azeite ou leite acabavam geralmente em cima do corpo nu de uma mulher. Essa corrente artística ficou conhecida por «accionismo vienense». «Até a Áustria, que condenou Otto por pedofilia, quer comemorar os seus 80 anos (Mühl tem, neste momento, 77) com pompa e circunstância», diz Danièle. «Mas é óbvio que ele não tenciona lá pôr os pés enquanto o julgamento não for revisto...»


É por um caminho de terra batida, perceptível apenas para quem conhece, perto da aldeia de Moncarapacho, que se tem acesso à comuna.


Da antiga comuna, nas palavras de Otto Mühl, resta «a assistência comum às crianças, a sexualidade comum dos adultos, o abastecimento comum - compras, cozinha, automóvel...» O pintor assegura, no entanto, que são mais as diferenças do que as semelhanças entre a grande comunidade fundada em 1971 e a vida de hoje. As distinções passam por pontos importantes: «Hoje procuramos contacto com o exterior e são possíveis relações a dois (facto novo em relação a Friedrischof)», diz. «Tenho uma relação a dois com a minha mulher Claudia, o que não me impede de ter relações intensas com outras mulheres. Tudo é possível, mesmo ligações sexuais com o exterior. Contudo, devido ao perigo de infecções, a alternativa é a sexualidade dentro do grupo. Para quem tiver contacto com o exterior, a sexualidade dentro da comunidade deixa de ser possível até que sejam feitas análises. O grupo protege-se assim da sida e de outras doenças. Não se trata de uma barreira moral. Temos um membro que teve contacto sexual com o exterior e que continua a pertencer à comuna», afiança Otto.


O sexo livre no interior da comuna é assumido com naturalidade. Mas «os adultos não têm hoje relações sexuais com os jovens», garante Mühl. «Estes tendem a praticar a sua sexualidade no exterior. Não têm intenção de se integrar sexualmente. Uma menina de 17 anos tem um amigo em Paris que nos virá visitar em breve.» Esta é uma revelação importante, dado que Mühl foi condenado por pedofilia - o que o coloca sob o olhar atento da polícia europeia. Quanto às queixas apresentadas por adolescentes saídas de Friedrischof, e que estiveram na origem da sua condenação, Otto afiança: «As raparigas foram pressionadas, porque lhes disseram que iriam parar à prisão se não depusessem contra mim. Uma pessoa tem de ser já muito consciente e segura de si para não se deixar impressionar pela pressão moral de um processo judicial.»


Actualmente, a comunidade divide o tempo entre pintura, música e convívio. «Há um horário firme de refeições, encontramo-nos muitas vezes ao fim do dia e entregamo-nos espontaneamente ao canto e à dança. Por vezes ocupo-me a pintar e a escrever, trabalho para exposições. Tenho um dia-a-dia muito variado.»


Sobre si, Otto afirma: «Não sou um revolucionário. Sou um pedagogo, na verdade sou um professor de liceu - estudei pedagogia, alemão, história e psicologia, e mais tarde frequentei a Academia de Arte de Viena. Considero a nossa vida comunal aqui no Algarve como um projecto de investigação social.» Vai mais longe: «Pelos nossos filhos se vê que a nossa vida não é uma utopia.» E acrescenta, fazendo uma estranha referência divina, ele, que se considera «por princípio, contra todo o tipo de fé»: «Neste caso, cito as palavras de Jesus: nos teus frutos te deves reconhecer.»



Sobre a abolição do conceito de casal, que praticou durante vinte anos em Friedrischof, Mühl explica: «O que me interessa é a superação do ciúme. É preciso garantir à mulher o direito de decidir quando, onde e com quem quer praticar a sua sexualidade, sem que o parceiro se sinta no direito de a censurar por isso. (...) Sigmund Freud afirma que o enamoramento, quando uma pessoa se apaixona, é uma regressão infantil. O enamorado comporta-se como uma criança perante a mãe. Trata-se de uma circunstância hormonal que, como se pode ver pelas taxas de divórcio no mundo ocidental, não dura muito. (...) Como o adulto não é uma criança, o enamoramento devia ser livre do desejo de posse. Assim, ainda fico mais satisfeito quando a amada tem outros homens», diz. «É sinal de que ela está bem.»


Sexo com todos quatro vezes ao dia

A comuna de Friedrischof durou de 1971 a 1991. Situava-se no campo, a alguns quilómetros da capital austríaca, Viena. Era, na origem, um projecto radical(...)

A filosofia da comunidade de Friedrischof assentava numa sexualidade livre, no fim das relações a dois e da família tradicional. Tudo era possível. Muitos rapavam o cabelo, quem quisesse andava nu. A comuna era auto-suficiente: tinha cozinha, lavandaria, escola, horta, ateliê de pintura e até um estúdio de cinema (Otto realizou vários filmes, além da obra de pintor). As noites eram ocupadas em terapia de grupo. Tocava-se música, dançava-se, fazia-se teatro. Apesar de não ter preparação para o efeito, Otto fazia de psicanalista. Era também o mais velho, os outros andavam na casa dos vinte. «Quando um psiquiatra dorme com o seu paciente, a relação médica termina. Comigo é exactamente o contrário», admitirá, no documentário televisivo Escravos no Paraíso.
. Aos 45 anos, depois de ter sido abandonado pela mulher, Otto Muhl decidiu viver em regime comunitário. Como a sua casa era grande, pô-la à disposição. A coisa correu bem, e Muhl resolveu transpô-la para ponto grande.


O sexo ocupava um papel central. Praticava-se três a quatro vezes ao dia - de manhã, ao meio-dia, ao lanche e ao final da tarde -, sempre com parceiros diferentes. As mulheres mais populares chegavam a precisar de anotar nas agendas os pedidos - às vezes para as três semanas seguintes. A época era indissociável da libertação sexual dos anos 60. Friedrischof era uma espécie de paraíso.

Mas para uma comunidade de sexo livre, havia regras a mais: era proibido ter relações sexuais com o mesmo parceiro mais do que uma vez por semana - ou a pessoa tornava-se «suspeita de manter um relacionamento». As relações sexuais só podiam demorar 10 minutos. As relações homossexuais eram proibidas. O sexo estava absolutamente dissociado do amor - os gestos de carinho eram inexistentes.

Para ler mais
Parte do artigo publicado na revista francesa Courrier International, de 1/8/2003.

Um comentário:

São Rosas disse...

Interessante. Gostei de ler.

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